15 de abr. de 2013

~Numb~


I.
Frio.
A lâmina percorre minha pele, rasga minha carne e meu sangue percorre o caminho até pingar sobre o chão imundo do banheiro. Seguro a lâmina com mais força sentindo a dor emergindo. Pouco a pouco a vontade de chorar se transforma em êxtase e sinto como se nada além de repulsa e uma imensa vontade de vomitar pudessem tomar meus sentimentos. Retiro o estilete da carne cortada e sinto a ardência, a dor e o sofrimento partindo junto ao sangue. Vejo minha carne se transformando em marcas. Sinto a alma se curar e espero até precisar de novo.
Escondo o estilete no bolso da frente do moletom e pego um pedaço da folha de meu caderno para limpar o sangue. Preciso ser rápida. Degustaria a liberdade causada pelo corte, mas este não é o momento. Limpo o sangue e largo a folha no cesto de lixo. Puxo a manga larga do moletom e visto o capuz. Respiro fundo e seguro meu caderno.
- Amber? Vai demorar? – escuto Lizzie perguntar do outro lado.
Abro a porta e sorrio.
- Desculpa... Não vinha ao banheiro desde ontem.
- Tudo bem... Thomas está nos esperando no estacionamento.
Saímos do banheiro e caminhamos pelo corredor vazio da escola.
Cruzamos a porta para o estacionamento e vemos Thomas sentado sobre o capô do Volvo C-30 prata de Lizzie. Ela corre sobre os saltos da bota de camurça preta e bate em Thomas que ri.
- Já disse pra tomar cuidado com meu bebê! Sai já daí! – ela diz furiosa.
- Calma Lucinda. – Thomas retruca. – É apenas um carro – ele ri.
- O meu carro! – ela enfatiza.
- Ok crianças, parem de brigar. Preciso beber.
- São 15h35min Amber. Já quer beber? – Thomas pergunta ironizando.
- Toda hora é hora de beber. – Lizzie retruca. – Claro, na vida da Amber.
Rimos e entramos no carro.
Lizzie dirige, eu sento no carona e Thomas no banco de trás.
- Vamos para minha casa? – Thomas pergunta.
- Ainda tem bebida lá? – Lizzie pergunta – Não, porque a Amber precisa de álcool, senão vai morrer em uma crise de abstinência! – ela ironiza e ri.
- Idiota. – retruco.
- E para o governo das duas... Tenho Heineken e Uísque.
- Perfeito! – respondo.
Alguns minutos depois estacionamos em frente à casa de três andares de Thomas. O terceiro é ocupado apenas pelo quarto dele, no qual passamos tardes e noites assistindo milhares de filmes grotescos, macabros e sangrentos em sua LCD e bebendo seu estoque de bebidas.
Entramos e subimos direto para o quarto. Eu e Lizzie nos jogamos sobre os pufes no chão e esperamos Thomas.
- O que faremos hoje? – ele pergunta entregando uma garrafa de Heineken pra cada uma de nós.
- Soube que vai ter um show de rock na Mortuária. – Lizzie diz.
- Mortuária? – pergunto sem saber do que se trata.
- É... Uma boate meio dark que abriu em um dos armazéns abandonados próximos a estrada que leva a capital. – Lizzie responde.
- Por mim tudo bem... – Thomas fala.
- É... Pelo menos mudamos a rotina – respondo.
Logo começa a chover e observo os pingos cristalinos caindo sobre a vidraça da porta que dá para a sacada do quarto de Thomas.
Imagino o frio lá fora, a vivacidade trazida pela chuva e o perfume de terra molhada. Sinto como se eu fosse uma daquelas gotas, escorrendo para longe, transparente, sem fim nem começo.
As horas passam e resolvemos jogar videogame. As 19h00min eu peço a Lizzie que me leve em casa porque preciso me arrumar.
- Aconteceu alguma coisa? – Lizzie pergunta no caminho para minha casa.
- Nada – respondo.
- Conheço você... Tem algo errado – ela insiste.
- É justamente por não acontecer nada que tem algo errado.
- Como assim? – ela pergunta.
- Digamos que eu não agüente mais viver sempre as mesmas coisas.
- Você precisa de um namorado.
Ela ri.
- Eu preciso de vida.
Respondo enquanto abro a porta do carro e corro para casa.
- Me busque às 23h30min – grito a ela que acena positivamente com a cabeça e vai embora.
Entro em casa e sinto o cheiro de mofo das paredes do velho sobrado. Subo as escadas de madeira que rangem sob meu peso e caminho pelo corredor acarpetado. Passo pelo quarto de minha mãe e sinto o cheiro de álcool misturado a perfume e cigarro. Vou até meu quarto no fim do corredor e fecho a porta atrás de mim. Tiro o moletom e o jogo sobre minha cama. Sinto a dor do corte ao espichar o braço.
- Desculpa mãe... – sussurro enquanto toco o corte. Ligo meu notebook. Dou play em minha playlist e abro a porta do banheiro de meu quarto. Pequeno mas meu.
Espero o chuveiro velho aquecer a água e tiro a roupa. Olho-me no espelho embaçado e vejo as cicatrizes em minhas costas. Um resquício de tristeza revolta minha alma, mas logo sorrio.
- Estou viva.
Digo a mim mesma. E isso basta para que eu prossiga.
Logo sinto a água quente tocar meu corpo e limpar meu braço. O sangue se mistura a água e a dor e estou livre outra vez. Livre para seguir os próximos dias até precisar me machucar de novo... E de novo e de novo. Mas estou viva, e é isso que importa.
Depois de tomar banho e me enxugar, seco os cabelos e percebo a raiz negra que surge entre os fios vermelhos.
Raiva e falta de dinheiro.
Vou até o quarto e me visto.
Vestido preto curto, corpete preto de couro, botas cano alto de salto, meia-calça preta. Maquiagem sombria, revolta transparente. Perfeito. Estou pronta.
- Amber? – escuto a voz de Thomas do outro lado da porta.
Abro e vejo a silhueta forte e os olhos azuis de Thomas. Uma touca com o símbolo do Rolling Stones está sobre seu cabelo castanho escuro e sua franja cai sobre os olhos.
- Rolling Stones? – pergunto surpresa.
- É... É de quando eu tinha quatorze anos.
- E ainda cabe na sua cabeça? – pergunto.
Ele ri e entra no quarto.
- Ta linda darkinha – ele diz.
- Obrigada... Mas, como entrou? – pergunto.
- Você deixou à porta aberta – ele responde – e tomei a liberdade de trancá-la.
- Fez bem... Estou ficando louca!
- Esta ficando não... Sempre foi.
- Idiota.
Rimos.
- Quer comer alguma coisa antes de irmos pra festa? – ele pergunta.
- Pode ser... Marquei com Lizzie de irmos às 23h30min. Que horas são?
- 20h58min. Mando um SMS avisando que estamos comendo.
- Ok.
Saímos do quarto e eu apago a luz.
- Preciso levar alguma coisa? – pergunto.
- Não... Eu pago tudo.
Caminhamos pelo corredor e logo estamos passeando sobre as calçadas molhadas. Chegamos à loja de conveniência de um posto de gasolina na esquina de minha casa. Entramos e compramos dois hambúrgueres.
Sentamos em uma mesa do lado de fora e começamos a comer.
- Você é um completo idiota – falo.
- Eu trago você para comer e me agradece com xingamentos – ele fala. - Legal cara, legal mesmo.
- Por isso você me ama... Mas enfim... Você, Lizzie, amor, é.
- Não, não. Eu amo ela, ela me odeia.
- Odeia tanto que tem suas iniciais escritas em todas as partes do quarto.
- Sério? – ele pergunta surpreso. – Nunca reparei.
- É difícil – digo e rimos – ainda mais quando estamos chapados.
- E você? – ele pergunta.
- Eu o que?
- Vai morrer solteira criando gatos?
Rimos.
- Eu não sei amar... Não dessa forma.
- Aprenda.
- Não quero, mesmo assim, obrigado pela oferta.
Ele ri.
Terminamos de comer e ligamos para Lizzie.
Logo seu Volvo estaciona e vemos sua silhueta sedutora aparecer, envolvida em um longo vestido preto tomara que caia, corpete sobre a cintura e cabelos enrolados em um rabo de cavalo super alto. Sempre linda.
- Prontos? – ela pergunta rindo.
- Já ta na hora? – Thomas pergunta – e a propósito... Ta linda.
Rimos.
- São 22h15min, podemos ir – ela responde.
Partimos.
The Smiths tocando no player, e cigarros em meio aos dedos. Ponho a cabeça para fora da janela e sinto o vento frio da noite tocar meu rosto. O céu está estrelado e a Lua cheia ilumina a estrada deserta e longa.
Os campos ao redor mostram o quão perdidos estamos, mas logo nos aproximamos dos armazéns abandonados. Muitas histórias assustadoras assombram o lugar. Nada que nos intimide.
Chegamos ao armazém 11, alto e cheio de rachaduras nas paredes. As pequenas janelas próximas ao teto estão cobertas por fitas pretas e uma multidão de góticos, punks, headbangers e roqueiros cerca o lugar. Ouvimos os remixes de Blutengel tocando no interior do lugar e sentimos o forte cheiro de perfume e cigarro.
- Chegamos, enfim. – Lizzie diz enquanto saímos do carro.
Caminhamos até a imensa fila rente a porta e esperamos nossa vez.
Acendo um cigarro e trago, vejo a fumaça ser levada pelo vento.
Logo entramos no enorme lugar e nos perdemos entre a multidão de spikes, corpetes, moicanos, coturnos e roupas pretas que dança entre as luzes vermelhas e brancas.
Entrego-me a música e deixo meu corpo se permitir. Começamos a beber. Fecho os olhos e continuo no ritmo.
Sinto que sou envolvida por braços fortes e uma silhueta alta acompanha meu ritmo. Dançamos e não abro os olhos. Nossos corpos se entrelaçam ao movimento sombrio e sinto o perfume de sândalo que emana do corpo que me segura. Sei que ele está sorrindo. O ritmo da música se torna mais frenético e acompanhamos. Estamos cada vez mais próximos e a cada toque seu corpo parece transmitir energia e fogo ao meu.
A música muda, Depeche Mode começa a ser tocado e seu corpo se desvencilha do meu. Sinto-me sozinha e perdida ao me separar dele, abro os olhos e não o vejo. Arrependo-me de não ter aberto enquanto ainda dançávamos.
- Quem era o cara dançando comigo? – pergunto a Lizzie que dança com Thomas ao meu lado.
- Que cara? – ela pergunta confusa.
- O cara que tava dançando comigo, ora.
- Não tinha ninguém. – Ela responde assustada. – Ta drogada? – ela pergunta.
Não respondo e rumo à saída.
Enquanto saio à música Lúcifer começa a tocar. Incrível coincidência.
Desvencilho-me da multidão e logo me encontro sozinha do lado de fora.
Alguns punks fumam e bebem perto de suas motos e grilos gritam ao meu lado.
- Amber... – escuto a voz de Thomas atrás de mim. Lizzie sai com ele.
- Tudo bem? – ela pergunta.
- Acho que tirando minha loucura sim. Preciso diminuir a quantidade de drogas.
Rimos.
- Melhor irmos ao Pullder, não acha? – Lizzie pergunta se referindo ao nosso lugar preferido da cidade. Apenas maus elementos e roqueiros se reúnem para jogar e beber. E sempre nos reunimos lá nos finais de semana para fazer o mesmo.
- É... Vamos embora. – Thomas diz me segurando entre seus braços. Caminhamos até o Volvo e logo partimos.
Chegamos meia hora depois ao Pullder que fica no subúrbio da cidade, algumas quadras de minha casa.
Algumas motos estacionadas na frente. Nenhuma agitação.
Ultrapassamos a porta de madeira e nos misturamos aos homens barbudos e mal encarados. Entramos furtivamente e caminhamos até o bar.
- Boa noite meninos. – Ângela, a atendente mexicana de quadril largo diz.
- Pouco movimento... – Thomas diz enquanto nos encostamos à bancada de madeira.
- Parece que todos foram à inauguração da nova sensação do momento. O que fazem por aqui?
- Viemos de lá. – Lizzie concluiu.
- Não nos sentimos muito a vontade... – falei.
- Certo... E o que vão querer?
- Heineken e sinuca. – Thomas respondeu.
Eu e Lizzie caminhamos até a mesa de sinuca e escolhemos nossos tacos. Thomas pôs as bolas sobre a mesa e começamos a jogar, sem regras.
Bebemos e nos distraímos até as duas da madrugada.
Minha mente começou a se perder em devaneios depois de tanto álcool entrar em minha corrente sanguínea. O sono começou a modificar meus sentidos e o perfume do estranho misterioso que dançara comigo horas antes voltou até mim. Sentia mais uma vez seu corpo me tocando e a sensação de eletricidade que entorpeceu meu corpo.
Medo.
Algo me fazia temer e de certa forma é odioso me sentir frágil.
- Quero ir pra casa.
Falei interrompendo o jogo. Notei que uma menina oriental usando mini saia trocava olhares com Thomas que estava encostado em uma parede afastada.
- Faço questão de ir com você.
Lizzie respondeu revirando os olhos e pondo a língua para fora insinuando nojo ao ver Thomas paquerando a menina.
- Thomas vai ficar? – perguntei.
- Mesmo que queira ir, vai ir caminhando. – Lizzie respondeu irritada.
Rimos e caminhamos até o bar.
- Tudo por conta do Tom? – Ângela perguntou.
- Exato. – Lizzie respondeu sorrindo e piscando.
Saímos do lugar e nos deparamos com a chuva fria que começara a cair. As gotículas molharam meu rosto e meu cabelo me fazendo voltar ao normal. O efeito do álcool estava se perdendo e eu estava me acordando. Comecei a mudar de idéia sobre ir para casa e dormir. Lizzie certamente não tem esses planos...
- O que faremos agora? – ela perguntou enquanto nos sentamos dentro do carro e nos esquentamos com o ar-condicionado.
- Filmes? – perguntei.
- Não... – ela respondeu entediada.
Ficamos em silêncio.
- Te mostrei meu novo livro? – ela perguntou entusiasmada.
- Não... – respondi. - É. Não me mostrou.
- Ensina coisas. – Ela falou.
- Que tipo de coisas? – pergunto – tem sexo no meio?
- Amber... Às vezes tenho certeza de que você só é virgem porque não consegue agüentar a dor de tirar sua própria virgindade com os dedos.
Rimos.
- Idiota... Sobre o que é o livro? – pergunto.
- Magia negra – ela responde animada.
- Magia negra? Tipo... Prenda seu homem, ou, traga a pessoa amada em sete dias com a ajuda de um bode suicida? – pergunto e rimos.
- Idiota, retardada, nojenta, sem imaginação.
- Ok... Ensina xingamentos espirituais?
Gargalhamos.
- Ensina a fazer pactos. – ela diz enfim.
- E conhecendo você como conheço, sei que vai querer fazer esses pactos. Mas... Pra que? – digo.
- Ainda não sei... Mas pensei que podíamos fazer algum jogo.
- Tipo jogo do copo ou tábua ouija? – pergunto.
- É... Mas um pouco mais divertido.
- Tipo?
- Tipo comunicação... – ela diz – com o seu pai.
- O que? Sua vaca! Ta me tirando é? – digo furiosa. Lizzie me conhece desde os sete anos de idade e sabe que não o conheci.
- Vai dizer que nunca teve curiosidade em saber como ele era? Sei que você e sua mãe praticamente não conversam... E além do mais, ela é louca!
- Sim. Louca como eu. E se você não parar vou acabar estrangulando você e dando seu corpo aos gnomos.
- Gnomos? – ela pergunta rindo.
- É. Gnomos. – respondo indignada.
- Idiota. Topa ou não? – ela pergunta.
Penso um pouco e me lembro que literalmente não tenho nada a perder. Qual vai ser a diferença? Essas coisas não existem.
- Topo. Mas duvido que aconteça algo.
Lizzie ri e entrelaça seu dedinho ao meu em sinal de juramento e cumplicidade. Dá a partida e rumamos para seu apartamento no centro da cidade.
Chegamos ao luxuoso prédio com sacadas fechadas com vidro fumê e elevadores lustrados e espelhados. Subimos até o décimo nono andar, a cobertura onde Lizzie mora e adentramos a sala acarpetada que cheira a lavanda.
Caminhamos pelo corredor até o quarto de Lizzie e entramos no enorme quarto vermelho com preto. Deito-me sobre a colcha de oncinha sobre sua cama de casal e olho para o teto coberto por espelhos. Lizzie tira as botas de camurça e meu celular toca.
- É o Thomas – digo a Lizzie que ri e abre a enorme janela de seu quarto. O vento frio toca meu rosto e ela solta seu longo cabelo negro.
- Atende. – Ela diz sorridente.
- Ok... Agora me expliquem por que me deixaram sozinho aqui? – escuto a voz estridente e ao mesmo tempo irônica de Thomas do outro lado.
- Quisemos deixá-lo mais a vontade com a japonesinha.
- Suas retardadas! Era apenas uma paquera. – ele grita.
- Ok... Desculpe nossa falta de percepção. – digo debochando.
- Onde vocês estão? – ele pergunta.
- Na casa da Lizzie.
- E eu vou ir para casa como? – ele pergunta.
- Caminhando – respondo e desligo o celular.
Lizzie se joga na cama enquanto ri.
- Somos cruéis... – ela sussurra e bate em minha mão.
- Somos... Mas agora quero ver o tal livro.
Lizzie acende a luz e caminha até seu closet enorme e volta trazendo consigo um enorme livro de capa negra e lisa. Sinto minha pele se arrepiar e penso que possa ser o frio que está entrando junto ao vento. Uma sensação desconfortável percorre minha espinha e me faz querer terminar com isso de uma vez.
Medo outra vez.
- Tudo bem? – ela pergunta.
- Sim... Vamos começar.
- Ok... Bom, aqui diz que precisamos de um pentagrama desenhado com sangue e que é necessário que fiquemos dentro dele para a proteção. Depois precisamos invocar o espírito e prometer dar a ele o que ele quiser.
- Se fosse real seria perigoso. – Digo. Lizzie ri.
- Como desenharemos um pentagrama com sangue? – ela pergunta mais para si mesma que para mim.
- Tem carne ai? – pergunto pensando no sangue que fica nas bandejas.
- Muita por sinal... Acha que funciona com sangue de animal?
- Diz algo ai sobre ser necessário usar sangue humano?
- Não... Vamos pegar. – Lizzie fala.
Levantamos e tiro minhas botas.
Caminhamos até a cozinha enorme e pegamos quatro bandejas de carne cheias de sangue. Cortamos os plásticos e despejamos em uma jarra de vidro. O cheiro é nojento e a textura também, mas rimos enquanto fazemos.
- Pietra ta dormindo? – pergunto me referindo à irmã de Lizzie.
- Acho que sim... Geralmente ela dorme a meia noite quando se cansa de olhar TV.
- Certo... Acho que deu. – Digo.
Lizzie acena com a cabeça e caminhamos levando a jarra cheia de sangue até o quarto. Tiramos os tapetes vermelhos de veludo do chão e jogamos sobre a cama.
- Acha que vai dar pra desenhar um pentagrama que fiquemos dentro? – ela pergunta.
- A gente dá um jeito.
Começamos a desenhar e logo o sangue termina. Vemos que deu pra desenhar um pentagrama de ótimo tamanho. Levantamos e ficamos de pé dentro do desenho. Tomamos cuidado para não deixar nenhuma parte de nossos corpos do lado de fora.
- E agora? – pergunto me sentindo arrepiada mais uma vez.
- Qual o nome completo do seu pai? – ela pergunta lendo o livro.
- Tem que ser ele? – pergunto um pouco desgostosa.
- É... É melhor, não acha?
- Mas nem sabemos que tipo de homem ele era. – Digo.
- Como se importasse... – ela ri – diz logo...
- Era Edgar Edwin Lefayr.
- Legal... Isso me lembra algo – ela diz rindo.
- Ok, comece logo antes que eu me arrependa. – Digo.
Lizzie segura minhas mãos e nos encaramos.
- Pelo sangue aqui despejado e pela morte que desejares que Edgar Edwin Lefayr venha a nós e faça o que mandares.
- É assim mesmo? Parece que ta falando em terceira pessoa. – falo e rimos.
- Cala a boca e me deixa fazer – Lizzie diz e torna a falar – Pelo sangue aqui despejado e pela morte que desejares que Edgar Edwin Lefayr venha a nós e faça o que mandarmos.
O vento frio aumentou e repetimos as duas por cinco vezes seguidas. Nada acontece.
- Pelo visto não dá certo... – sussurro.
- Deve ter algo errado... – ela responde.
- Como termina isso? – pergunto querendo ir pra casa.
- Não sei... – ela responde e rimos.
- Sua idiota.
Digo e solto suas mãos. O vento parece aumentar, minha pele se arrepia e saio do pentagrama. A luz do quarto de Lizzie se apaga e sinto meu corpo tremer. Fico tonta e me perco no escuro.
- Amber... – escuto Lizzie gritar.

Sinto como se meu corpo estivesse se tornando parte da escuridão. Estou caindo, me tornando profunda. Meus olhos se abrem e a minha frente se encontra um jardim. Roseiras cheias de espinhos me mostram o caminho. Piso sobre a terra fria e nada sinto além das sensações causadas pelo ambiente úmido e irreal. Uma porta vermelha me espera ao fim da trilha. Vejo minha mão tocar a maçaneta. A porta se abre... Escuridão.

- Amber! – escuto mais uma vez.
Meus olhos se abrem e sinto a saliva que escorre do canto de minha boca aberta. Lizzie me segura assustada. Estamos no escuro e sinto as lágrimas quentes dos olhos de minha amiga pingando sobre meu rosto.
- O que... – tento falar – o que houve? – pergunto.
- Ah sua idiota! Desgraçada! Quase me mata de susto. – ela fala me abraçando.
- Acho que preciso dormir... – digo recuperando a consciência. Confusa. Desejando apenas ficar sozinha.
- Quer dormir aqui? – ela pergunta ainda preocupada.
- Tanto faz... – respondo me levantando, um pouco tonta.
Caminho até a cama e atiro os tapetes no chão. Deito-me.
Sinto meu corpo pesado e vejo Lizzie me observando.
Tudo perde o sentido, sinto minhas cicatrizes arderem. Minhas adoráveis cicatrizes...
Adormeço.

II.


Sol.
A luz cega meus olhos e minhas pernas se espicham com força.
- Ai! – escuto Lizzie sussurrar ao acordar.
- Desculpa – digo rindo ao vê-la deitada nos pés da cama.
- Que horas são? – ela pergunta preguiçosa.
- Não sei nem que dia é hoje!
- É sábado... – ela diz pegando o celular – e são nove horas da manhã.
- Acordamos com as galinhas... – digo e rimos.
- Acho que não – Lizzie diz se levantando e fechando as cortinas negras.
Meus olhos voltam ao normal e olho para a lâmpada. Os acontecimentos da noite passada começam a cruzar meus olhos em ordem.
O estranho na festa, o jogo, o desmaio, o sonho enquanto estive apagada.
- Que merda de noite em... – digo e Lizzie ri enquanto se atira sobre a cama ao meu lado.
- Parece que fui atropelada por mil bodes enfurecidos – ela diz.
- Não duvido que tenha acontecido... Talvez tenhamos invocado o espírito de algum lutador.
- Cala a boca Amber... – ela diz e rimos.
- Mas enfim... Acho que preciso diminuir a quantidade de drogas... Desmaios não são legais.
- Acho que foi por causa do jogo... – Lizzie diz. Uma mecha do cabelo liso caindo sobre o rosto, à maquiagem borrada.
- Acredita mesmo nessas coisas, não é? – pergunto.
- Preciso de uma crença... Não é fácil viver sozinha. Não consigo acreditar em mim mesma... Não sou forte como você.
- É mais forte do que eu... – digo e sou sincera. Sempre vi Lizzie como uma espécie de gerador de energia. Sempre a vi como meu escudo e minha força.
- Eu acredito em coisas que não posso ver nem tocar, coisas que não tem respostas... Às vezes acho que é mais fácil viver sem ver e conhecer, como uma incógnita perdida no espaço – ela diz.
- E eu acredito em você... Preciso de você e de Thomas e isso é errado. Ter vocês dois como marquises que seguram meu templo é perigoso... Se um dia eu perder algum dos dois, desmoronarei.
- De tudo isso o pior é que não conseguimos existir sem ter no que nos agarrar... – ela fala e ri.
- É... Mas nesse momento o único poder que me influência é o da fome!
Rimos e nos levantamos.
Caminhamos até a cozinha e pegamos os restos de uma pizza escondidos no fundo da geladeira. Voltamos para o quarto com copos cheios de Coca e começamos a comer.
- O que faremos hoje? – ela pergunta.
- Fugiremos para o Egito e lá encontraremos a Rainha dos vampiros e pediremos para ela nos transformar – digo e rimos.
- Tem que parar de ler os livros da Anne Rice.
- O que? Não posso fazer nada se tudo que ela escreve é perfeito!
Escutamos batidas na porta.
Lizzie se levanta e a abre a porta. Nancy a empregada surge com seu uniforme rosa bebê e nos saúda com um sorriso nada animado.
- Bom dia Lizzie – a mulher fala.
- Bom dia... – Lizzie responde.
- Desculpe me intrometer, mas, vai precisar que eu durma com Pietra hoje?
- Não... Acho que ela já tem idade pra ficar bem até eu chegar.
- Tudo bem... – Nancy responde e Lizzie fecha a porta.
Vejo um tom de tristeza em seu olhar que se perde na parede preta onde a cama fica encostada.
- Que houve? – pergunto enquanto mordo uma fatia da pizza.
- Acha que deixo Pietra sozinha demais? – ela pergunta.
- Você tem 16 anos... Não tem idade pra ser mãe de uma menina de 10. E além do mais... Ela tem Nancy que a trata como uma filha.
- Não tenho muita certeza sobre isso... Acho que ela sente minha falta.
- Você doou nove anos de sua vida a ela... Ela sabe disso! E sempre que ela precisa você está presente... Relaxa!
- É... Tem razão. Mas às vezes tenho medo de me afastar demais... – Lizzie termina e volta a comer.
Depois de terminarmos ela se arruma e eu limpo o rosto borrado pela maquiagem escura. Lizzie me leva para casa.
Entro e encontro a TV pequena ligada em um canal qualquer onde passam propagandas de aparelhos para audição.
Garrafas de cerveja estão espalhadas sobre o tapete empoeirado e em cima da mesa de centro se encontra o cinzeiro cheio de minha mãe. Ela dorme sobre o sofá vestindo apenas calcinha e uma regata cinza coberta por uma camisa masculina xadrez. O cabelo encaracolado desgrenhado cobre seu rosto e sua pele parece úmida. Da cozinha surge Jeremy, o novo namorado de minha mãe.
Sem camisa com as tatuagens a mostra e uma garrafa de cerveja na mão ele me olha.
Reviro os olhos e subo as escadas correndo. Tranco-me em meu quarto e fecho as cortinas.
Escuro e solidão.
Ligo meu computador e como sempre dou play em minhas músicas. Vou até o banheiro, tiro a roupa e tomo banho. Ao sair olho minha figura pálida e cansada no espelho. Visto calça jeans preta, camiseta larga e comprida, meu moletom de sempre e all star. Visto o capuz e desço as escadas.
Procuro dinheiro nas coisas de minha mãe e encontro cinqüenta reais. Saio e vou até a farmácia. A atendente emburrada me observa. Compro duas caixas de tinta de cabelo vermelha e volto para casa.
A água vermelha escorre de minha cabeça como sangue. Imagino como seria cortar minha garganta. Imagino a quantidade abundante de sangue como mostram nos filmes e começo a rir. De certa forma parece engraçado imaginar o quanto a estrutura humana parece fraca e frágil. Qualquer ruptura emocional ou física pode modificar muita coisa.
A vida não parece ter tanto sentido quando pensamos na morte... Construir um mundo para perdê-lo em determinado momento.
Existir é a maior interrogação existente.
Depois de lavar meu cabelo e vê-lo extremamente vermelho outra vez, me deito. Adormeço e deixo o dia passar até a noite retornar e trazer minha liberdade.
Acordo com meu celular tocando.
Atendo.
- Boa noite senhorita sombria – escuto Lizzie falar do outro lado.
- Boa noite meu doce amor obscuro – respondo sorrindo.
- Vamos sair? – ela pergunta.
- Que horas são? – respondo.
- 20h00min... Passo pra te buscar em alguns minutos.
- Ok... – respondo e me levanto ainda sonolenta.
Vou até o banheiro, escovo meus dentes e tomo uma rápida ducha.
Visto um vestido curto e preto de alcinhas, meia calça arrastão, bota all star e meu moletom inseparável. Coloco um pouco de perfume, pinto os olhos de preto e desço as escadas.
- Vai sair Amber? – escuto Jeremy perguntar enquanto minha mãe massageia suas costas.
- Não. Vou buscar o gato que fugiu.
- Temos um gato? – ele pergunta.
Reviro meus olhos e bato a porta atrás de mim. Vejo o Volvo de Lizzie estacionado na frente do portão enferrujado de minha casa. E por sinal, vejo Lizzie retocando o batom no espelho retrovisor.
Os cabelos longos soltos sobre os seios fartos. Vestindo um vestido vermelho de seda com corpete preto sobre a cintura, meia calça preta e coturnos.
- Minha mãe não satisfeita em ser vadia, trouxe um retardado pra dentro de casa. – Digo ao entrar no carro. Lizzie solta uma gargalhada.
- Boa noite pra você também querida... – ela debocha – quer que eu o mate? – ela pergunta e rimos.
- Seria adorável matar os dois – respondo.
- Vamos buscar o Thomas? – ela pergunta disfarçando a ansiedade.
- Se não quisermos que ele corte os pulsos e escreva uma declaração de amor com sangue nas paredes do banheiro luxuoso dos pais dele... – rimos e partimos.
Paramos na frente da mansão de Thomas e o vemos fumando na sacada. Ele ri e logo passa pela porta da frente e se senta no banco de trás.
- Sabe o que é pior do que ter duas melhores amigas odiavelmente lindas e retardadas? – ele pergunta ao fechar a porta – amá-las incondicionalmente!
Rimos e vamos para o Pullder.
Entramos e fazemos o mesmo de sempre. Jogamos sinuca e bebemos.
Tiro meu moletom e o deixo em cima de um banco próximo a mesa onde estamos jogando.
Com o fluxo de álcool aumentando em meu sangue volto a me sentir estranha.
Sinto como se meu corpo estivesse amolecendo e meus olhos saindo de órbita.
Sinto sono e vontade de desaparecer. O esquecimento é com certeza a solução para todos os dilemas e o fim para todos os medos.
Quero ser esquecida... Sentindo-me cada vez mais entorpecida me encosto na mesa. Minha cabeça parece girar de trás para frente.
- Cara... É sério! Precisa parar com as drogas! – Thomas fala me segurando.
- Leva ela pro carro enquanto eu pago – Lizzie fala.
Sinto vontade de vomitar e é isso que faço quando saímos.
Vomito e choro sem saber por qual motivo.
Os olhos fechados e o vento tocando meu rosto.
Thomas segura meus cabelos enquanto vomito. Agradeço por tê-los como melhores amigos e guardiões.
- Tudo bem? – Lizzie pergunta quando nos encontra na frente do bar.
- Acho que ela bebeu demais... – Thomas diz.
- Vem, vamos pra casa. – Lizzie diz enquanto Thomas me segura e enxuga meu rosto com sua camiseta branca.
Entramos no carro e vamos para a casa de Thomas.
Eles me colocam sobre a cama macia e adormeço mais uma vez.
Desejo morrer.

 “Olhos negros penetrando nos meus. Sinto meu corpo se deslocar sem sair do lugar. Estou me perdendo e volto a cair na escuridão. Velas vermelhas por todos os lados. Altares nos cantos das paredes escuras. Cheiro de sangue. Sinto como se minha alma fosse saltar para fora e minha pele estivesse sendo arrancada de minha carne. Meus lábios pedem pelo fim. A porta vermelha outra vez. Meus olhos se tornam embaçados e me perco na escuridão mais uma vez.

Acordo.
Minha cabeça pesa e sinto como se meu corpo não pudesse obedecer aos comandos do meu cérebro.
Escuto o ronco de Thomas e me lembro de ter dormido em sua casa.
A primeira coisa que se passa em minha frente é o refrão da música Lúcifer de Blutengel.
Sinto frio e me encolho. Pego meu celular e vejo que são 04h30min da madrugada.
Levanto com cuidado para não acordar Thomas e saio do quarto. Desço a escadaria longa e saio pela porta da cozinha.
Ainda está escuro e o frio entorpece meu rosto.
Meu moletom.
Lembro de ter deixado no Pullder.
Acendo um cigarro e agradeço por nunca guardar nada além de meu estilete nos bolsos do moletom.
Começo a caminhar pela rua deserta e tento alinhar os pensamentos.
Escuto passos atrás de mim.
Tento evitar me virar e escuto risos.
Certamente alguns retardados querendo me estuprar... Que diferença vai fazer? Ao certo nem sei o que pensar.
- Gótica – os caras atrás de mim gritam e riem.
Idiotas.
Penso e continuo andando.
Minhas pernas tremem, sinto medo. Meu corpo se arrepia e sinto como se o frio estivesse sendo substituído pelo calor de um abraço. Sinto como se os braços do cara “invisível” que dançou comigo na Mortuária me envolvessem.
Quando volto a mim me encontro em meio a cinco caras. Bonitinhos, da minha idade... Divertem-se tentando me assustar.
Penso em ligar pro Thomas ou pra Lizzie, mas certamente tirarão meu celular. No fundo não sinto medo. No fundo não sinto nada além de um estranho fogo que percorre as entranhas de minhas almas. Um fogo que parecer fortalecer todos os átomos de meu corpo e me fazer sentir o cheiro do sangue do corpo de cada um que me cerca. Os pensamentos ridículos que cruzam suas mentes imundas percorrem meus olhos confusos. Sinto como se todo o fogo que entorpece minha alma estivesse prestes a se libertar e ocasionar uma imensa combustão.
Meus olhos percebem a silhueta negra que se move com velocidade.
Xingamentos.
Olho para o lado e vejo uma Harley Davidson estacionada no meio da rua.
Volto por completo a mim quando braços fortes envolvidos em uma jaqueta de couro me seguram. Sou puxada para longe e vejo que algo espantou os caras.
- Que porra é essa? – pergunto quando me ligo na situação.
- Acabei de te salvar idiota – escuto uma voz grave e estridente responder.
- Que grandes diferenças isso vai ocasionar na sua vida? – pergunto tentando me soltar dos enormes braços que me levam até a moto.
- Não acha meio estúpido sair sozinha há essa hora usando esse tipo de roupa?
- Você nem sabe se eu realmente queria ser salva! – respondo aos berros quando consigo me soltar.
Arrumo meu vestido amarrotado e enfim cruzo o olhar com o corpo pálido vestindo roupas pretas a minha frente. Coturnos, calças jeans pretas, camiseta de poeta preta, jaqueta de couro. Os cabelos lisos caindo sobre o rosto furioso. Os olhos negros cobertos por cílios enormes. Os lábios carnudos meio abertos. Meu coração dispara.
É ele.
O perfume de sândalo. Os braços. O calor e a energia que emanam de seu corpo.
- Eu conheço você... – falo enquanto ele encosta-se à moto e põe as mãos na cintura larga.
- Impossível... Acabei de chegar à cidade e já me encontrei salvando uma louca metida à gótica.
Mostro o dedo do meio para ele que ri.
- Seu nome? – ele pergunta.
- Te interessa? – retruco e rimos – Amber – respondo.
- Amber... – ele repete enquanto toca nos lábios machucados. - Tome mais cuidado.
Ele diz enquanto monta a moto.
- Vai me deixar aqui? – pergunto desejando muito uma carona para casa.
- Vai fazer alguma grande diferença na minha vida te levar a algum lugar? – ele pergunta rindo.
Reviro os olhos.
- Obrigada, de qualquer forma. – Respondo entre os dentes.
Ele ri.
- Sobe aqui – ele diz enquanto põe seu capacete. Sorrio e obedeço.
Por um instante me pergunto desde quando comecei a confiar em estranhos extremamente lindos que me salvam durante a madrugada.
Sorrio enquanto monto a moto.
Ele a liga e pega minhas mãos as colocando em sua cintura.
Seu toque me energiza como fios cheios de volts.
- Mora a onde? – ele grita e vou lhe indicando o caminho.
Chegamos até minha casa. Pulo da moto enquanto ele a desliga e tira o capacete.
- Obrigada de novo... – respondo enquanto coloco os cabelos para trás das orelhas.
- Tome mais cuidado, devo recomendar outra vez... – ele diz enquanto ri.
- Qual seu nome? – pergunto a ele que ri enquanto seus olhos percorrem meu corpo de cima a baixo, me transmitindo uma estranha sensação de conforto.
- Gregory.
Ele responde enquanto coloca o capacete e dá partida na moto.
Um sorriso se forma em meu rosto quando o vejo desaparecer no final da rua.
Gregory...
Sussurro e entro em casa.
Pego meu celular enquanto me jogo em minha cama e ligo para Lizzie.
- Você ta bem? – ela pergunta ao atender.
- Infinitamente bem... – respondo sorrindo. Ela ri do outro lado.
- Que houve? – ela pergunta.
- Acabei de ser trazida em casa pelo cara mais sexy e estranho que já conheci.
Ela liberta uma gargalhada do outro lado.
- Como é que é? Deixo você na casa de Thomas e você termina a madrugada tendo um encontro?
- Não foi exatamente um encontro... Vou comer alguma coisa e dormir, quando acordar te ligo e nos encontramos, ok? – pergunto.
- Ok... Se eu não morrer de ansiedade antes! – rimos e desligo.
Gregory...
Sussurro mais uma vez.

III.
O frio entorpece meu rosto, a noite parece mais escura que o normal. Pela primeira vez em muito tempo vejo Lizzie e Thomas trocando alguns beijos.
Gregory.
Seu nome permanece em meu pensamento como uma pulsação infinita de desejo. Eu deveria pensar em me afastar de pessoas suspeitas, mas elas me atraem, da mesma forma que tudo que é mal me atrai. E definitivamente me sinto estranha em pensar da mesma forma que todo mundo, o mal é criado pelas nossas mentes.
Escuto alguém bater na porta do quarto de Lizzie. Volto a ele e fecho a porta que dá para a sacada atrás das cortinas pretas.
Lizzie abre a porta enquanto me jogo sobre sua cama.
- Que foi? – ela pergunta a Pietra que surge atrás da porta segurando uma boneca.
- Nancy disse que mamãe voltou – Pietra sussurra. Vejo as mãos de Lizzie se fecharem sobre a madeira da porta, suas unhas arranham a pintura e suas pernas parecem estar prestes a cambalear.
Os olhos de Lizzie cruzam os meus e ela sai do quarto levando Pietra.
- Que porra foi essa? – Thomas pergunta enquanto senta ao meu lado e fuma.
- Algo sobre a mãe delas ter voltado? – respondo. - Acho que a terceira guerra mundial vai começar.
Rimos.
- Será que ela vai ficar bem? – ele pergunta. Uma ruga de preocupação cresce entre suas sobrancelhas.
- Nós nunca estivemos bem... – respondo e me levanto.
- Vai embora?
- Preciso ir ao Pullder ver se meu moletom sobreviveu.
- A gente se encontra depois então... Vou ficar aqui caso a Lizzie surte.
- Certo... Cuida bem dela.
Digo e saio do quarto.
Logo estou caminhando entre as ruas desertas e frias da velha Massachusetts.
Chego ao Pullder em uma hora e meia, nenhuma movimentação estranha além dos batimentos agitados de meu coração.
Entro e me aqueço.
- Boa noite Amber – Ângela diz enquanto me sento em um banco rente ao balcão do bar.
- Olá... – respondo sorrindo.
- Heineken? – ela pergunta.
- Não... – respondo – na verdade to procurando meu moletom. Esqueci aqui na noite passada.
- Desculpe Amber, mas sabe como são as coisas por aqui... É difícil encontrar algo perdido.
- Eu sei... Mas se ver por ai pode guardar pra mim?
- Claro... Sem problema. – Ela responde sorrindo. – Vai beber algo?
- Duas taças de vinho, a minha com gelo. – Uma voz sensual diz ao sentar ao meu lado. Logo identifico a silhueta larga vestindo jaqueta de couro e os cabelos pretos sobre os ombros. Um sorriso largo me recebe.
- De novo... – ele fala enquanto nossos olhos se cruzam me causando arrepios constantes.
Sorrio.
- Vinho com gelo? – pergunto.
- Eu gosto – ele responde enquanto Ângela nos entrega as taças. Ele bebe e eu também. O sabor do vinho aquece meu corpo tornando os arrepios menos constantes, agora se assemelham a mesma corrente de energia que senti ao dançar com o estranho na Mortuária.
- Mas enfim... O que veio fazer em Lewis? – pergunto.
- Lugares perdidos e Massachusetts. Combinação perfeita... Gosto disso.
- Hmmm... – respondo e mordisco o lábio.
- Procurando algo? – ele pergunta me deixando confusa.
- Tipo o que? – respondo.
- Tipo isso... – ele diz ao me mostrar meu moletom. Meu coração dispara, meus lábios se separam. “Que tipo de cara é esse?” Pergunto a mim mesma.
- Como? – pergunto sem conseguir formular a frase.
- Estive aqui noite passada. Cabelos vermelhos como sangue me chamam atenção, então observei você por um tempo. Quando saiu vi que esqueceu isso, pensei em guardar...
- Certamente você não vai se ofender se eu disser que é muito estranho.
Ele ri.
- Coisas estranhas são mais divertidas que clichês – ele fala terminando de beber. Faço o mesmo.
- É... De certa forma sim. – Respondo. – Mas como me encontrou ontem? E por que não me entregou naquele momento?
- Não estava comigo... Havia passado em casa antes de encontrá-la. Foi apenas coincidência Anjo... – ele responde sorrindo.
Impossível não me perder no infinito eterno do negro profundo de seus olhos.
Anjo...
É como se tudo a minha volta perdesse o sentido.
- Tudo bem... – respondo tentando esconder a excitação causada pelos seus olhos. – E de qualquer forma, obrigado mais uma vez.
Sorrimos.
Meu celular toca.
É Thomas.
- Oi? – falo ao atender.
- Ta no Pullder? – Thomas pergunta do outro lado. A voz agitada. Soluços no fundo.
- Sim. Por quê? O que houve? – pergunto assustada.
- To indo buscar você – ele diz e desliga o celular.
- Problemas? – Gregory pergunta.
- Nada demais... – respondo me levantando – preciso ir.
- Até mais... – ele diz sorrindo. – Cuide-se Anjo...
Sorrio e saio às pressas, sentindo a emanação do desejo causado em mim.
Logo o Volvo de Lizzie estaciona sobre a calçada molhada. A chuva que antes estava fina parece despertar cada vez mais intensamente. Pulo no banco do carona e fecho a porta.
- O que houve? – pergunto ao ver Lizzie e Pietra no banco de trás. Os olhos de Lizzie parecem mortos, frios e perdidos no distante do ódio.
Pietra chora silenciosamente. Os cabelos louros molhados pela chuva. Os olhos azuis marejados pelas lágrimas.
- A terceira guerra mundial começou – Thomas diz ironizando. Seu semblante me preocupa.
- Elizabeth – digo ao pensar na mãe de Lizzie.
- Ela apareceu... Quer dinheiro e disse que vai ficar no apartamento pelo tempo que quiser. Lizzie se exaltou e desmaiou. Tirei as duas de lá e agora estamos aqui.
- Merda... – digo.
- Pra onde vamos? – Thomas pergunta.
- Apenas ande – Lizzie sussurra entre os dentes. Seus cabelos negros e longos desgrenhados se tornam cacheados. Sua pele cada vez mais pálida. Linda como um Anjo de neve.
Anjo.
Penso ao me lembrar de Gregory.
Thomas acelera e a chuva desperta. A estrada a frente parece deserta, ouvimos apenas o trepidar da água caindo sobre o carro e o som de nossas respirações ofegantes. Meu coração parece acelerar.
Meu coração parece explodir.
Um estrondo, um grito, uma luz.
Anjo...

Não sinto minhas pernas. Sangue escorre sobre meu rosto. Meus braços estão imobilizados. Tento virar a cabeça, mas sinto como se tudo pudesse destruir-me.
Meu coração acelera, diminui. Desmaio.

O labirinto de rosas vermelhas me absorve. Os espinhos tocam minha pele e o sangue percorre meu corpo. Ao fim da trilha encontro a saída. Uma porta vermelha. Vermelho como sangue... Anjos... Sangue.












IV.
Anjos de sangue.
O primeiro pensamento que cruza minha mente quando me acordo.
Anjos de sangue.
Não sinto meu corpo, minha visão nunca esteve tão turva. Apenas borrões escuros surgem a minha frente.
- Durma anjo... – escuto alguém sussurrar.
Eu mordiscaria meu lábio se estivesse consciente. Meu coração desejou mais que nunca que Gregory estivesse ao meu lado.

Desperto sã e livre.
Levanto minhas mãos e toco meu rosto. Sinto pequenos cortes em minha pele. Minha visão se torna normal.
As paredes brancas ao meu redor me enjoam.
- Amber... Amber! – escuto minha mão dizer enquanto nossos olhos se cruzam. Ela me abraça e sinto suas lágrimas mornas escorrerem sobre meu rosto. Eu realmente não consigo entender absolutamente nada.
A terceira guerra mundial realmente deve ter começado.
Penso em Thomas, Lizzie e Pietra.
- Onde eles estão? – pergunto a minha mãe que me segura cada vez mais forte.
- Eles quem meu amor? – ela pergunta me enjoando.
- Lizzie... Thomas e Pietra – respondo me sentindo fraca.
- Thomas está bem, logo virá visitá-la... Lizzie está melhorando.
Minha mãe desvia os olhos dos meus.
- E Pietra? – pergunto sentindo meu coração disparar.
- Ela... Ela não está mais conosco. – Minha mãe fala tentando segurar minha mão. Sinto meu corpo congelar. Desmaio.

Acordo.
Confusa e relembro os últimos acontecimentos. Minha mãe dorme na poltrona ao lado de meu leito.
Sinto o vazio tomar conta de minha alma. Talvez por ser tão ligada a Lizzie e ter visto Pietra nascer e crescer eu tenha roubado essa dor para mim.
Enfim tenho tempo para me olhar.
Minha perna quebrada, meus braços cheios de novas cicatrizes e uma dor insuportável em minhas costas.
Eu vou ficar bem... Mas Lizzie precisa de mim.
Minha mãe logo acorda e retorna ao seu estado de extrema preocupação, como se adiantasse alguma coisa.
- Que dia é hoje? – pergunto.
- Sexta – minha mãe responde.
- O que? – pergunto assustada. Dormir por tanto tempo não parecia ser muito normal.
- Fraturou duas costelas e a perna. Thomas foi o que menos se machucou.
- Cadê ele? – pergunto ansiosa para vê-lo.
- No saguão tentando ver a Lizzie.
- Quero vê-lo... – digo.
- Tudo bem... Vou buscá-lo.
Ela diz e sai do quarto.
Alguns minutos depois Thomas passa pela porta. A touca preta deixa a franja sobre os olhos azuis, o lábio e a testa cortados, ainda assim lindo. Jamais pensei que pudesse sentir-me tão viva em vê-lo, tão segura... Mas definitivamente, a única vontade que tenho é de jogar-me em seus braços e sentir que tudo ainda é como deve ser.
- Ressurgiu das sombras, dark – ele diz sorrindo ao se aproximar de mim.
- Não posso desaparecer sem levar vocês comigo – respondo e ele me abraça. Eu o seguraria comigo por mais tempo se meu corpo não estivesse tão fragilizado.
- Nós somos praticamente imortais – ele fala ao me olhar – e parece que tudo vai ficar bem.
- Espero que sim... Dormi por tanto tempo que não sei nem mesmo o que falar.
- Já soube? – ele pergunta enfim.
- O mundo perdeu um pouco mais da luz... Lizzie deve estar louca.
- É... Não consigo ver ela. Parece que ela entrou em algum tipo de estado de proteção... Como um casulo.
Rimos.
- Eu descobri que dou qualquer coisa pra nunca perder vocês dois.
Thomas ri e toca em meu rosto. Nossos olhos se cruzam.
- Amo você dark, e se eu tivesse uma irmã de sangue, não a amaria tanto quanto amo você.
Abraçamo-nos e mesmo dolorida, tento apertá-lo com toda minha força.

Eu soube que nada jamais seria como fora um dia.
Algo havia despertado junto a tudo que aconteceu. Era como se cada resquício de vida existente no ar pudesse me fazer sorrir e chorar. Recebi alta no domingo e Thomas me levou para casa junto a minha mãe, que tem tentado fazer de tudo para que eu me sinta bem.
Mas nada conseguirá me deixar bem até que eu possa ver Lizzie... Abraçá-la e tomar toda sua dor para mim. A lembrança do sorriso de Pietra tem atormentado meus sonhos... Eu sabia que faltava algo em meus pensamentos, um pequeno e talvez insignificante pedaço do quebra-cabeça, mas eu desejava lembrar. Queria trazer tudo de volta.
Principalmente Gregory...






Dois meses depois.
Estou perfeita outra vez.
Digo, fisicamente apenas. Por dentro continuo destruída, perdida em um precipício de interrogações e exclamações invisíveis. Perseguidoras.
Thomas tem vindo me ver todos os dias, e ainda não tivemos notícias de Lizzie.
Isso tem nos deixado louco.
Loucos que mesmo em estado de observação fumam e bebem tudo que prometa tirar-nos do mundo.
Não consigo encontrar Gregory e nem lavar meu moletom. O perfume de sândalo permanece impregnado ali, e eu adoro isso.
- Amber... Estou saindo. – Minha mãe fala ao abrir a porta de meu quarto.
- Desde quando me avisa quando vai sair? – pergunto sem olhá-la.
- Podia tentar ser menos agressiva... – ela diz.
- Colhemos o que plantamos.
Respondo e ela sai.
Resolvo comer, desço as escadas e encontro Jeremy assistindo futebol na sala.
- Cadê Marcy? – pergunto me referindo a minha mãe.
- Saiu.
- E você ficou fazendo o que aqui?
- Moro aqui agora – ele responde rindo.
Olho para minha roupa, moletom preto, calça jeans escura, all star e cabelo desgrenhado. Não importa, mudo o rumo e saio.
Caminho pela rua e agradeço a Deus por estar com meu celular. Ligo para Thomas e combinamos de nos encontrar em uma praça próxima a casa de Lizzie.
- Precisamos vê-la. – Digo ao sentar no banco do carona ao lado de Thomas.
- Eu sei... Parece que a mãe dela ta tomando conta do lugar.
- A vadia precisa sair alguma hora... O porteiro nos conhece, sabe da situação.
- Certo... Vamos lá.
Chegamos ao décimo nono andar do prédio de Lizzie alguns minutos depois. Tocamos a campainha torcendo para que a mãe de Lizzie tenha saído.
Nancy nos recebe sorrindo.
- Finalmente... Entrem logo. – Ela diz nos fazendo correr até o fim do corredor.
Chegamos à porta do quarto de Lizzie e Thomas segura minha mão. Sua força é minha força. Abrimos a porta.
O cheiro de cigarro e vinho inunda nossas narinas, a escuridão é intensa, e ouvimos Save Our Souls do Blutengel tocando a toda nos fones de ouvido.
Vemos a silhueta de Lizzie envolvia em lençóis brancos. Aproximamo-nos da cama com cuidado para não assustá-la, mas somos surpreendidos com sua risada desdenhosa.
- Cruzaram as portas do inferno pra salvar a princesa perdida. – Ela diz. Sei que está rindo.
Não penso duas vezes, corro e me atiro sobre a cama. Adentro um indescritível estado de êxtase quando sinto seus braços prenderem meu pescoço e me puxarem para perto de seu corpo. Ela me deita e permanecemos abraçadas, em silêncio, entre lágrimas por longos minutos. Nem mesmo o eterno definiria as sensações que cruzam minha alma neste momento. A fragilidade e a força de Lizzie sempre foram as mais intrigantes façanhas conhecidas pela minha mente.
Era como se o comprido e sensual corpo de minha amiga transparecesse o medo e a coragem entrelaçados em um abraço mortal.
Logo sentimos os braços de Thomas envolvendo nossos corpos. Ele me empurra e se joga nos braços de Lizzie como se estivesse mergulhando no mais profundo dos mares de desejo.
Seus lábios se encontram e beijos incandescentes abordam o momento. Penso em Gregory e sinto meu corpo tremer, meu rosto ruborizar e um desejo insaciável corromper meu coração.
- Voltamos. – Digo. Thomas e Lizzie param de se beijar e permanecem abraçados.
- E agora é pra sempre... – Lizzie completa e volta a me abraçar.

Eu soube que nada seria como antes, soube que nenhum de nós era a mesma pessoa. Soube que nossos destinos estavam cada vez mais entrelaçados. Soube que precisávamos cada vez mais um do outro... Soube que o fim nunca viria, nem mesmo o início chegaria... Éramos apenas um movimento contínuo de desejo. Éramos a morte resplandecida na vida.
Não esperei grandes emoções ao reencontrar Lizzie. Senti o quanto fria ela havia se tornado... Senti o quanto vazio nós estávamos nos tornando.
Mas não deixei de caminhar... E agora, penso que todas essas madrugadas perdidas entre passos e músicas estourando meus tímpanos nos fones de ouvido, sirvam para que eu tente encontrar a continuidade do desejo que me consome.

- Amber... – acordei ouvindo a voz apreensiva de Jeremy. Meus olhos encontraram sua silhueta forte, músculos cheios de tatuagens, de pele pálida e cabelos louros e desgrenhados.
- O que é? – perguntei confusa.
- Amber... – ele continuou sussurrando. Levantei e caminhei até a porta para acender a luz. Seu braço me empurrou com tudo para cima de minha cama e senti sua força felina sobre meu corpo. Minhas unhas penetraram sua pele e o suor que brotava de nossos corpos se misturou. Chutei suas pernas, mas ele parecia me segurar com mais força a cada segundo. Meus gritos de ódio ecoavam pelo quarto e tive esperanças de que alguém ouvisse.
Nada.
Jeremy encheu-me de tapas e socos, empurrões e arranhões. Mordia minha carne com a força de um leopardo faminto. Sua pele roçava a minha e sua barba por fazer fazia o mesmo em meu rosto. Eu lutava com todo meu poder, mas nada adiantava. O fogo do medo preencheu cada canto de meu corpo fazendo meu coração acelerar de uma forma indescritível. Eu tinha certeza de que qualquer um poderia ouvi-lo bater.
Não era apenas medo... Eram milhares de sentimentos obscuros entrelaçados ao meu desejo pela morte. Eu estava enterrada entre os absurdos causados pelos fantasmas que assombram minha mente.
Eu senti a força penetrar meu corpo e senti minhas unhas penetrando a carne de Jeremy. Seu rosno de dor me enfureceu e me encheu de mais força, e meus dentes apunhalaram seu peito nu. Eu havia me tornado um animal enfurecido.
Empurrei seu corpo como uma pena para trás e saltei sobre o mesmo. Meus dentes arrancaram sua carne e o sabor do sangue preencheu meus lábios. Eu queria mais, procurava por algo que não conhecia, apenas queria e desejava mais. Como a continuação de uma dança mortal onde os felinos são os maestros e a dor e a sedução são os instrumentos. Eu estava me tornando parte daquela carne e o sabor de suas entranhas, vísceras e pele em minha boca me faziam estremecer.
Os gritos e empurrões que nada adiantavam me enchiam de uma vontade incrível de rir. E eu ria... E saboreava cada parte daquela dor que já não era minha, mas sim, causada por mim.
Era absurdamente bela a sintonia que brotava entre a dor e o desejo.
O sangue que alimentava meu desejo esfriou-se saciando minha sede pela dor. O ódio fora substituído pela dor.
Meus olhos se recomporão e vi o que fiz.
O corpo de Jeremy jaz sem vida, com o rosto e a carne deformados pelo ódio, pelo medo e pelo desejo, no chão de meu quarto.
Eu soube que deveria sentir algo de ruim sobre o que fiz, mas nada além de uma imensa fissura pela dor que posso causar abasteceu minha alma.
Eu preciso limpar a sujeira. É isso.
Ninguém melhor que Lizzie e Thomas para me ajudar... Eles não poderão me condenar. O homem me estuprou.
E só agora percebo a dor que causou ao penetrar em minhas entranhas. O sangue entre minhas pernas parecia brotar como água de uma nascente.
A dor nos meus membros não era tão grande quanto o nojo que senti ao pensar que tudo ocorrera assim. Eu não sinto nada. Nem mesmo o pequeno nó no estômago que sempre me seguiu.
Estou livre.
Segurei meu celular entre as mãos ensangüentadas e disquei o número de Thomas.
Ele atendeu.
- Preciso de vocês... – falei.
- O que houve? - ele perguntou – vou buscar a Lizzie e vamos ai.
- Rápido... – respondi.
Desci as escadas e encostei-me ao lado da porta.
Minutos depois Thomas tocou a campainha e a abri.
Sentei-me sobre o chão e esperei que me vissem.
Meus cabelos desgrenhados, minha pele torturada, o terror em meu rosto e a liberdade em minha alma.
Lizzie soltou um estridente e agudo gritinho quando me viu. Thomas ajoelhou-se ao meu lado e me segurou em seus braços.
- Que merda é essa? – Lizzie perguntou ajoelhando-se ao meu lado junto a Thomas. Seus olhos lacrimejaram e logo suas bochechas rosadas encheram-se de pequenas gotículas cristalinas de preocupação.
- Meu quarto... – eu disse. Thomas e Lizzie entre olharam-se.
- O que houve? – Thomas perguntou com calma. Seus olhos estavam possuídos pela mesma raiva que dominou meu corpo. Eu sabia que ele me protegeria de qualquer coisa.
- Meu quarto... – eu disse mais uma vez. Thomas se levantou e caminhou até a escada.
Levantei impondo minha força às dores e caminhei devagar atrás de Thomas. Lizzie me envolveu com seus braços e subiu as escadas comigo.
Eu sabia que qualquer um que observasse meus olhos neste momento não se encantaria com o verde esmeralda, mas sim, com a morte entrelaçada as pupilas.
Chegamos à porta de meu quarto. Eu não senti medo de abri-la e encontrar o cadáver de Jeremy. Não senti medo do que meus amigos pensariam. Não senti nada além de uma imensa necessidade de viver aquele momento mais uma vez. De sentir aquele poder possuindo meu corpo novamente.
Thomas abriu a porta e após entrar, não demorou a sair vomitando pelo corredor. Lizzie desesperou-se ao ver o que fiz.
Ambos vomitaram. Lizzie chorou como criança.
E eu senti vontade de rir. Eu soube que não deveria, mas nunca achei tanta graça em uma situação.
Vê-los tão sensíveis, tão fáceis de atingir. Tão frágeis.
Frágeis como coelhinhos fugindo de lobos.

Lizzie me ajudou a submergir em sua banheira.
A água quente confortou meu corpo como se estivesse me abraçando.
O sangue se entrelaçou a mesma e me vi mergulhada em um fosso vermelho.
Meus machucados arderam e a dor entre minhas pernas parecia atingir até meu último fio de cabelo.
Eu estava com medo de voltar ao estado de fragilidade mais uma vez.
Mal conseguia esperar até estar sozinha e enfiar o estilete em minha carne. Thomas havia nos deixado na casa de Lizzie.
Não sei o que fez com o corpo de Jeremy, mas não teríamos problemas.
Ninguém se importaria com o desaparecimento de um bêbado estuprador.
Menos minha mãe...
Mas eu nunca me importei da mesma forma que ela nunca se importou.
Lizzie limpou meus ferimentos com tanta doçura que desejei permanecer ali para sempre... Eu não me sentia merecedora de amor. Amor nada mais é que puro risco.
Mas eu a amo com toda minha força.
Lizzie me ajudou a vestir uma camiseta e short de flanela. Penteou meus longos cabelos vermelhos e deitou-se ao meu lado em sua cama.
- Nancy vai trazer algo pra gente comer... – ela disse.
Sua mão delicada acariciando meu rosto. Seus olhos negros perdidos nos meus. Lembrei-me dos olhos de Gregory... Tão próximos a vida e ao mesmo tempo tão mortos e profundos.
- Comprei minha passagem de ida para o inferno... – sussurrei e sorri. Lizzie sorriu também.
- Ele forçou? – ela perguntou enfim. Certamente se referia ao estupro.
- Sim. E eu me defendi. – Respondi.
- Mas ele conseguiu romper? – ela hesitou – você sabe...
- Quer saber se ainda sou virgem? – falei e sorri. – Não sou. Ele conseguiu. Sem muito sucesso, mas conseguiu.
Fiquei surpresa ao sentir as lágrimas caindo sobre meu rosto. Gregory era a única coisa que se passava pela minha cabeça.
- Quer falar sobre isso? – Lizzie perguntou. Eu soube que ela mal podia esperar para saber detalhes. E eu não sinto nada sobre o que aconteceu, além de uma imensa confusão sobre meus pensamentos relacionados a Gregory.
- Uma menina normal teria ficado traumatizada com o que aconteceu... – eu respondi e rimos.
- Mas você nunca foi normal, Amber. Nunca mesmo. – Ela falou.
- Perdi minha virgindade com estilo... – falei.
- É... Transar e ao mesmo tempo matar o cara é realmente ter estilo. – Ela falou. – Acha que somos loucas? – ela perguntou.
- Loucos são os que acreditam nas leis criadas pelos homens. – Thomas respondeu ao entrar no quarto e sentar sobre a cama. Acariciou nossos pés e sorriu. Estava sujo de terra e parecia exausto. Sua roupa presta estava soada e seus olhos azuis perdidos em um mundo que eu temi jamais conhecer.
- O que fez com o cara? – Lizzie perguntou enquanto sentamos e encostamo-nos a travesseiros rentes a guarda da cama.
- Enterrei – ele disse – e limpei o quarto de Amber.
- Obrigado... – falei.
- Somos irmãos... Irmãos ajudam irmãos a enterrar cadáveres e limpar as pistas criminais.
Rimos.
- Lizzie tem razão... Talvez sejamos todos loucos. – Eu disse.
- Um pouco afastados do comum, apenas... – Thomas disse. – Como se sente Amber?
- Confusa... – falei. – Acho que deveria estar desesperada. Surtando e me tornando uma traumatizada.
- Não sente nada disso? – Thomas perguntou.
- Nada além de nojo por ele ter me tocado. – Respondi.
- Amber... – Lizzie falou. – E se... – ela hesitou.
- E se o que? – perguntei.
- E se você tiver algum tipo de trauma que a prive de sentir piedade? – ela falou.
Thomas riu.
- Lizzie, tem olhado filmes demais... – ele disse.
- Ah... Vai dizer que não é fora do normal uma menina de 17 anos destruir a carne de um cara três vezes maior que ela, com os dentes?
- Existem relatos de pessoas que ganham força sobre-humana em momentos de raiva. – Thomas disse.
- E se eu disser que nunca me senti tão bem, como me senti destruindo a carne do cara? – falei e ri.
Os dois me olharam assustados.
- Isso é sério, não é? – Thomas perguntou.
- Sim. – Respondi.
- Sonhos estranhos, alucinações, desmaios, surtos e agora assassinato brutal.
Lizzie disse tentando encaixar meus sintomas.
- Tem algum caso de doença mental na sua família? – Thomas perguntou. – Sem ofensa. – Ele completou.
Ri.
- Não sei muita coisa sobre minha família. – Respondi.
- E o que você sabe? – ele perguntou.
- Que minha mãe engravidou com 12 anos de um primo e que morou com a mãe dele a vida toda.
- A sua avó... Eu me lembro da velha. – Lizzie disse.
- É estranho... – ele disse pensativo. – E essas alucinações?
- São sonhos estranhos... Sempre em um jardim de rosas vermelhas com muitos espinhos. Uma porta vermelha... Escuridão. Um altar, velas. É estranho.
- Muito... – ele disse. – Muito estranho.

Eu soube que muita coisa aconteceria depois de tudo aquilo.
Por alguns instantes acreditei que poderia ter alguma doença mental... Mas nunca me vi como uma psicopata ou coisa do gênero.
Nessa noite sonhei com o ritual que fiz com Lizzie. Pensei em meu pai... Pensei no quanto poderia ter sido diferente se ele não tivesse morrido ou desaparecido. Pensei no quanto seria diferente se minha mãe não tivesse engravidado tão nova.
Thomas dormiu no sofá do quarto de Lizzie.
Quando acordei, ela estava me observando. Já havia amanhecido e Thomas não estava mais lá.
- Dormiu bem? – ela perguntou sorrindo.
- Acho que sim... – respondi.
- Apenas ande... – Lizzie disse. – Ainda penso no acidente todos os dias.
- Apenas ande? – perguntei sem saber o que significava.
- Foi o que eu disse a Thomas... Talvez se eu tivesse dito “fique parado aqui”, nada tivesse acontecido.
- Não se culpe... – eu sussurrei enquanto acariciei seu rosto.
- Eu tento... – ela falou e sorriu. – Sonhei com o ritual. – Ela disse mudando de assunto. Meu coração disparou.
- Sonhei com a mesma coisa. – Respondi assustada. Os olhos de Lizzie saltaram.
- As coisas começaram a ficar difíceis depois daquele dia... – ela disse.
- Lembra da invocação? – perguntei.
- Sim... – ela respondeu. - Pelo sangue aqui despejado e pela morte que desejares que Edgar Edwin Lefayr venha a nós e faça o que mandarmos.
- É... Nós mudamos não é? – falei lembrando a primeira vez que falamos.
- Sim... Trocamos o mandares pelo mandarmos.
- E se tiver dado certo? – perguntei e ela sorriu.
- Isso significa que podemos controlar um espírito? – ela perguntou entusiasmada.
Rimos.
- Talvez... – respondi e continuamos rindo.
- Esqueci de comentar, mas, o nome do seu pai me lembra algo.
- Que algo? – perguntei.
- Winfayr. – Ela respondeu e riu.
- O serial killer? – perguntei relembrando alguns registros que lemos na biblioteca central da cidade.
- Isso mesmo. – Ela respondeu sorrindo. Seu rosto malicioso se enrijeceu.
- Ta dizendo que meu pai pode ter sido um serial killer? – perguntei confusa.
- É... Se ele foi um serial killer podemos explicar essa sua doença. – Ela falou fazendo aspas com os dedos ao dizer doença.
- E eu poderia ter nascido com o seu gene psicopata?
- É... Tecnicamente, pode ser hereditário. – Ela respondeu um tanto fascinada pela hipótese.
- Talvez o Thomas tenha razão... Você tem assistido a filmes demais.
Rimos.

Agimos como se nada tivesse acontecido.
Eu nunca me sentira tão viva... Retornei a minha rotina.
Thomas voltou me levou para casa as 17h00min. Lizzie fora comprar seu carro novo e eu resolvi me vestir e sair sozinha.
Ao entrar em meu quarto não senti medo e nem mesmo algum mal estar. Senti vontade de sorrir ao lembrar a forma como Jeremy se tornou pequeno perto de minha força.
Vesti calças jeans pretas, regata preta e meu moletom. O capuz sobre os cabelos vermelhos e os fios do iPhone caindo sobre o mesmo me acompanharam até o centro da cidade.
Caminhei sem rumo, desejando apenas encontrar Gregory.
Eu sabia que corria o risco de me machucar, mas pela primeira vez estava experimentando o sabor da paixão.
Eu soube desde o início que estava me apaixonando por Gregory. Pelo mistério que envolve Gregory.
Comprei Coopcakes e continuei caminhando. Sentei na escadaria de uma catedral e comecei a comer. A arquitetura gótica me chamou atenção e permaneci ali por longos minutos.
Satisfeita, continuei a caminhada.
A noite começou a cair e decidi ir ao Pullder.
Eu precisava encontrar Gregory. Sabia que ele freqüentava o lugar com grande freqüência, pelo menos era o que parecia.
Ao chegar torci por ver sua Harley Davidson no estacionamento, mas me decepcionei quando não a encontrei.
Decidi ir embora, mas quando me virei para voltar à rua o farol alto de uma moto me cegou.
Quando recuperei a visão o sorriso resplandecente em meus lábios não pode ser ocultado.
Os olhos negros de Gregory me fitaram e seus lábios entre a sensual barba por fazer se ergueram em um sorriso.
Ele estacionou a minha frente.
- Depois de tanto tempo voltamos a nos encontrar. – Ele disse sorrindo.
- Muitas coisas aconteceram... Precisei sumir. – Respondi.
- Os cabelos sempre como sangue. – Ele observou e riu.
- Eu devo considerar isso um elogio? – perguntei sorrindo.
- A decisão é sua... – ele respondeu. – Quer dar uma volta? – ele perguntou.
Eu realmente comecei a acreditar que as coisas estão mudando. O que eu mais desejei encontrar está a minha frente me convidando para sair. Se existe um Deus, que seja glorificado eternamente.
- Claro... – respondi pegando o capacete que ele me ofereceu e montando sobre a moto.
Insisti em me equilibrar sem segurá-lo, mas suas mãos pegaram as minhas e fizeram-nas envolver sua cintura.
O abraço mesmo não intencional parecia aquecer meu corpo como a mais forte corrente de desejo. A eletricidade voltou a percorrer cada pedaço oculto da minha alma. E eu sorri o tempo inteiro.
Ele estacionou a moto em frente a um portão enferrujado com as iniciais R e L esculpidas no metal.
Tirei o capacete e logo me vi diante do enorme portão.
O muro que cerca o lugar parece infinito, coberto por árvores e flores. O perfume da noite conquistou minhas narinas. O vento frio fez meus cabelos levantarem e Gregory parou ao meu lado.







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